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quinta-feira, 24 de junho de 2010

O Pão Nosso


Quarta-Feira, noite fria, momento aquecedor do "chá-da-quarta". Os irmãos vão chegando, cada um com sua maneira, sorriso, uns com uma garrafa térmica, outros com um pão, um pacote de bolachas. Sentamos à mesa posta no meio da igreja, cantamos, oramos, comemos e continuamos a reflexão sobre o "Pai Nosso".
Quando paramos sobre o "pão nosso", aplicamos o mesmo critério de interpretação que havíamos aplicado sobre o Pai - não é meu o Pai, não é de um povo, é nosso.
Também pensamos na conotação "espiritual" que o pão pode ter na fala de Jesus. Mas quando penso no pão como tudo o que possuo, ou conquisto, que me faz viver no cotidiano, então repenso toda a injustiça que cometo com o que não é meu, com o que é nosso.
O capitalismo, associado ao protestantismo americano, me ensina a cultivar minha espiritualidade de um lado, mas produzir e acumular ao máximo o que eu puder, de outro. Me ensina a dar minhas sobras, esmolas, para que o pobre possa ser socorrido. E em mim, o tamanho do meu sonho, cultivado pelos meu desejos mais infantis, regado pela minha ganância e adornado pela minha indiferença ao sofrer do outro, diz o teor do que me será "o necessário para o cotidiano".
Quando me dei conta de que o pão que chega à minha mão não é só meu, mas é nosso, percebo-me em dívida. Retenho pão do outro - enquanto divirto-me com a fartura inconsequente, rio do que não conseguiu alcançar o necessário para o seu dia.
Antes de me desesperar entendi por que peço perdão por minhas dívidas: confio inteiramente na graça de Deus. Me percebi devedor, mas confio no Deus que, ao aproximar-me dele em oração, sou transformado. Como foi dura a confrontação com minha realidade egoísta, mesquinha, mas foi melhor ainda a possibilidade de me achegar ao meu Pai, pedindo perdão e sentir-me acolhido mesmo achando-me em falta.
Achegar-se ao Pai confronta, transforma e consola. O Pai é nosso e o pão é nosso.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Os Náufragos de Deus


“O choro vem perto dos olhos para que a dor transborde e caia. O choro vem quase chorando como a onda que toca na praia. Descem dos céus ordens augustas e o mar chama a onda para o centro. O choro foge sem vestígios, mas levando náufragos dentro.” Cecília Meireles

Quando tentamos fazer teologia partimos da pergunta: o que é Deus? O problema é que a resposta pode nos levar a “quem é Deus”. Se estamos num ambiente onde deus é impessoal, apenas espiritual, então não fará a menor diferença o que nós imaginamos sobre o que ele faz, como age, sua ética, sua razoabilidade. Ao ser intocável e impessoal o outro nada mais é que objeto, não é sujeito, pois no outro nada enxerga. O deus grego era assim.

Se a minha resposta sobre o que é Deus me remete a Jesus, então tudo muda. O impessoal torna-se carne, o apenas espiritual habita entre nós, sente fome, prazer, alegria e chora. E uma confusão se instaura na nossa cabeça: queremos atribuir a Jesus os moldes de deus que víamos nos mitos, nos seres impessoais, intangíveis.

Para um deus impessoal não é nem um pouco complicado atribuir-lhe atributos que, para o outro humano, sujeito, pessoa, ficaríamos constrangidos em predicar: frio e calculista. Lembro-me que nas novelas antigas os piores vilões carregavam estes adjetivos. Para nós seres humanos a morte ainda é a maior catástrofe, nela enxergamos o ponto final da beleza – em uma forma crua de se enxergar a realidade, conheço a beleza poética que vê para além do tal ponto. Tanto assim o é, que o Deus da bíblia se recusa a ser conhecido como o deus da morte. Principalmente Jesus se relaciona diretamente com a proposta de vida, vida em abundância, vida eterna.

Se Jesus é pessoa como nós, seria cruel atribuir-lhe, pelo período chamado eternidade, a determinação da morte de cada pessoa, ser, que no mundo há. Se assim o fosse chamaríamos a Deus de frio e calculista. Repito, se nossa resposta sobre quem é Deus nos remete ao impessoal, tudo bem. Mas se nos remete a Jesus então é tudo diferente, pois agora é uma questão de caráter. E esse caráter ficaria altamente questionável a partir do menor versículo da Bíblia que, na minha opinião, lança a maior luz sobre o caráter eterno de Deus: Jesus chorou. (Jo 11:35)

Para um ponto de vista, Jesus determinou na eternidade a morte de Lázaro, pois por qual razão, agora que está frente ao seu túmulo aparece-nos com lágrimas? Parecem-me as lágrimas de uma atriz de novela das oito, que dia desses, ganhou um diploma de mestre da turma de escoteiros da qual, na infância, foi parte. É difícil acreditar em lágrimas de atores. E se Jesus é determinista, não faz nenhum sentido o choro, ou trata-se de Jesus o ator. Mas eu não acredito assim e me comovo com um Deus que ao presenciar a dureza da morte, a dor de ver um amigo partir, de uma família perder um pedaço de si, chora. O texto continua e nos diz que ele comove-se novamente em seu íntimo.

A partir disso vemos que Deus carrega dentro de si as dores dos naufrágios da nossa existência, carrega em seu peito a turbulência dos maremotos do nosso dia-a-dia conturbado, aflito, angustiado.

Na percepção iluminadora da Cecília Meireles a dor de Jesus lhe chega aos olhos para que transborde e caia, Ele chora. Não “triunfaliza” o próprio milagre que virá a seguir, não capitaliza novos fiéis ao seu movimento. Sente as dores dos outros, sente a própria dor e se permite o escoar de seus náufragos.

É a esse Jesus que eu me junto, pois - na minha pior face – sinto como Bernardo Soares (citado por Rubem Alves em Teologia do Cotidiano) “Há idas de poente que me doem mais que a morte de crianças” e realmente não quero ser isso. A nossa ganância nos torna impessoal no que possuímos e a perda do que temos nos dói mais que a catástrofe do outro. Nosso Jesus é rico em compaixão e isso significa não só sentir a dor do outro, mas aguçar a sensibilidade para quais dores buscamos carregar em nosso peito. Afinal, podemos escolher tanto as alegrias que queremos colecionar, quanto as lágrimas que iremos chorar.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A Vacina e o Propagandista


Minha filha adorou a notícia sobre a vacina contra a gripe H1N1. Empolgada com a novidade que a levaria à imunidade – lógico que o que ela gostou mesmo foi da propaganda da TV – pediu-me que a levasse com urgência ao posto de saúde. Eu, tentando ser um bom pai, assim o fiz. Ao lá chegar, algo fez com que todas as convicções da minha filha fossem dissolvidas em pó que o vento levou: o tamanho da agulha. Não sabia se ria ou se chorava, me senti um monstro pela duplicidade de sentimentos, porém foi incontrolável. Perguntava a mim mesmo, olhando aqueles olhos suplicantes por misericórdia e aquele beicinho inferior que sobrepujava o superior, semelhante a dois irmãos se abraçando para espantar o medo: Cadê aquela menininha consciente e conscientizadora? Cadê aquela meia-hora de sermão sobre o quanto a vacina é importante, urgente? Onde foi parar a menina cheia de bravura para enfrentar o “mal suíno”?
Hoje eu relembrei isso e me deparei comigo mesmo, depois de uma frase do Varillon: A fé é comprometimento, não mera opinião.
Das teologias protestantes a que mais me agrada é a da missão integral. Acho linda a propaganda de justiça, estilo de vida simples, igreja no mundo e tantos outros pontos que me encantaram e me rechearam o discurso. Cantei sobre isso, preguei sobre isso, discuti e argumentei sobre isso. Até que me percebi “com medo da agulha”. São várias as vacinas que esta teologia apresenta, mas tenho muito medo de uma em especial.
O estilo de vida simples é maravilhoso até o ponto em que ele vai para além da epiderme e precisa penetrar a minha corrente sanguínea para se tornar modo de vida, principalmente acima do discurso. É linda a propaganda da pessoa que poderia viver com menos para que o outro, que tivesse o nada, pudesse ter algo mais. Imagino isso na televisão: semelhante a um homem branco, de classe média, ajudando uma jovem negra da favela com um donativo mensal. A menina usa o dinheiro para estudar e se torna classe média igual a ele, fade out e uma música suave traz a logomarca do ministério da “distribuição voluntária de renda”. A propaganda passa e a novela retorna. O governo jamais instituiria um ministério desses, assim como as igrejas dificilmente criariam um ministério assim. Digo dificilmente por já ter visto um ministério assim numa igreja. Mas não estou falando dos outros, falo de mim. O pouco que tenho é muito ao que nada tem. Enquanto espero o dia amanhecer melhor a estes, sei lá por qual mecanismo miraculoso, – seja um pacote mais justo do governo, seja uma intervenção divina fantástica – nada muda, para os mesmos o dia continuará frio e cinza. O estilo de vida simples poderia mudar a realidade do outro para algo um pouco melhor, do nada para o pouco. O que realmente mudaria muito seria eu. Por medo das privações – e nem são tantas – perco a oportunidade de sair do nada (ouvinte do evangelho, palestrante do evangelho, propagandista) para o pouco (discípulo de Jesus, seguidor encarnacional das palavras dele).
Na verdade a “picada” só dói enquanto está na pele, enquanto não está transmitindo algo para dentro de nós. A agulha só gera medo, o medo dói mais que a “picada”. Sempre que organizei ou participei de iniciativas de ajuda humanitária percebi a mesma conclusão: fez mais bem a mim do que ao outro. Na questão da fé enquanto comprometimento, eu apenas preciso tornar cotidiano o que é esporádico: ajudo e me dou sempre, não apenas em dias especiais. Parece que vou perder muito, mas é só medo e egoísmo.
Preciso aprender com a coragem da minha menininha e encarar essa agulha de frente, com ou sem medo. Iniciar todos os processos que estiverem ao meu alcance, mesmo que incluam o meu discurso, para mudar a minha realidade egoísta e me livrar deste mal que é bem maior que o “do porco”, é desumano.