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sexta-feira, 30 de julho de 2010

O Pai dos Deficientes


Desde que fui operado da coluna no fim do ano passado, hoje foi a primeira vez que me atrevi numa corrida. Corria 100 metros caminhava outros 100, corria 200 caminhava 100 e vice-versa. Tive a impressão de sentir os parafusos que estão nas minhas vértebras finais, não só uma vez senti como se não tivesse equilíbrio nas pernas, mas mantive um ritmo tranquilo - persistente completei a distância proposta.

Antes da operação fiquei seis meses deficiente, precisei de cadeiras de rodas em todos os centros de compras pelos quais passei. No shopping da zona sul que eu frequentava era maravilhoso, sempre havia cadeiras de rodas motorizadas. Poucas lojas estavam despreparadas para os deficientes, mas as que estavam despreparadas proporcionavam uma frustração irremediável. Era humilhante ficar à porta esperando que todos os produtos colocados no corredor, que o deixavam ainda mais estreito, fossem retirados para que uma cadeira de rodas pudesse transitar. No Zoológico municipal a humilhação foi ainda maior: além de ser um terreno completamente acidentado – entende-se por se tratar de uma tentativa de um ambiente o mais rústico ou natural possível -, não havia cadeiras de rodas motorizadas, e as manuais que havia estavam todas com defeitos. A que eu peguei durou apenas até o final do meu passeio.

Havia uma sensação semelhante quando ouvia às programações dos pregadores mais carismáticos do rádio. Perdi a conta de quantas vezes recebi a unção da cura, alguns mais atrevidos diziam que eu não precisava ter fé, poderia contar com a fé dele. Nenhuma vez fui curado. Porém a medicina me curaria dentro de alguns meses, mas e quanto aos outros milhares mais deficientes que eu? A rádio era a continuidade do tanque de Betesda, 96.000 megahertz a mais de exclusão.

Hoje, depois de correr e não sentir dores, depois de poder lutar pelo restabelecimento pleno de minha saúde, fico com o coração cheio de compaixão pelos meus irmãos que em suas deficiências também lutam, mas sem tanto apoio.

Quando Jesus conta a sua parábola do grande banquete e nos diz que devem ser chamados os mancos, os cegos, os aleijados e os pobres, nos diz respeitos ao tipo de ser humano que Deus sempre buscou. Interpretar este texto como uma inclusão dos não-judeus num plano milenar de salvação divina é judaísmo também. Os judeus são os perfeitos os não judeus a escória agora convidada. Não concordo. O que eu percebo neste texto perpassa as impressões que tive quando fui forçado a enxergar pelo ponto de vista do excluído.

O não excluído, o não deficiente tem uma prepotência implícita em quase tudo o que faz. Quando constrói um prédio o faz o mais alto possível, o mais imponente possível, coloca barreiras para que se dificulte a entrada, portas que dificultam o trânsito. Sente-se invulnerável em suas construções dada a habilidade de entrar e sair das mesmas, mas aos outros nada é tão fácil. Quando Jesus chama aos deficientes deseja cada ser humano que se conheça o suficiente para saber que é vulnerável, que se sente insuficiente em si mesmo, por isso aceita a um convite de relacionamento de interdependência.

A teologia que elege um povo, geralmente diz que a comprovação de que este povo é eleito reside no fato de que os mesmos pecam menos, alguns até se arriscam a dizer que este povo não peca. Não cometem adultérios, alguns não bebem, não fumam, não comem alimentos gordurosos, não mentem, não, não e mais não. No final os escolhidos de deus também são os mais aptos, os mais capazes, o supra-sumo dos mortais. Este deus nem precisaria escolhê-los, estes sãos os servos que ganham da concorrência.

A teologia do Pai dos deficientes aceita aos trôpegos, como diz o texto correlato de Mateus “gente boa e gente má”, é uma teologia que se preocupa com as suas construções, não por que se sente fraca apenas, mas por precisar dar as mãos aos que nenhuma força tem.

Ainda ontem discutíamos sobre uma frase de uma música que dizia sobre Deus: “tu dás e tu reténs”. Uma construção teológica, uma idéia sobre Deus. Quando cantada pelos irmãos da classe média, tudo bem, a construção faz sentido – deus me deu um carro novo, mas reteve a minha casa maior, amém deus dá e deus retém. Mas quando estes mesmos irmãos vão às favelas cantar este mesmo cântico ao menino cujos avôs já moravam no mesmo barraco, sem nenhuma perspectiva de “ascensão”, só a segunda parte da premissa faz sentido – pra minha família deus só retém irmão. É uma construção que a uns abençoa consola, para outros só afirma uma dúvida que machuca, fere constantemente: se Deus é tão bom, por que tudo é tão ruim para mim? Como cantar esta frase nos campos de refugiado do Chade, do Sudão?

O interessante é que Jesus não afirma isso, ele nos diz que a chuva cai sobre justos e injustos. Tiago nos diz que do Pai vem toda boa dádiva, todo dom perfeito. Só que aos justos entende-se que o “pão” é “nosso”. O maná tinha que ser repartido diariamente, nunca retido. Tudo o que temos deveria ser repartido. Todo conhecimento, todo o carinho e afeto, todo o alimento, todo o amor. Se há pobreza no mundo é por causa - principalmente – dos perfeitos escolhidos que ao receberem seu pão o retém, e constroem suas mansões excludentes. O maná desses está retido, entretanto, lotado de vermes, o mau cheiro sobe aos céus.

Sou completamente dependente do Pai que me ama em minhas deficiências. Por isso mesmo fujo da incoerência de formular qualquer teologia que exclua ao pecador, ao fragilizado, ao desconforme. Ainda residem em mim resquícios da minha cabeça pré-deficiência, todavia conto com a misericórdia do meu Pai. Conto com a graça que me torna mais deficiente, enquanto luto para nunca mais re-construir minhas prisões.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Relação Íntima


Minha adolescência foi marcada por uma busca desigual pelo o que eu achava ser amor, pelo o que achávamos ser relacionamento: sexo. Tudo o que eu imaginava de mais íntimo, era estar nu frente a uma mulher. No meu grupo de convívio isso soava como um alvo, principalmente durante minha iniciação à adolescência – meus treze anos –, e como lugar comum no meio da mesma – entre 16 e 19 anos. Fiz muito sexo com muitas mulheres diferentes. Infiltrei-me em outros grupos de convívio, principalmente os que estavam ligados à classe artística. Em todos os ambientes sempre senti que a intimidade estaria ligada a uma boa relação sexual. Até que cresci e me casei.


No casamento tudo muda, nenhum casamento subsiste baseado apenas em sexo. Perdoe-me, mas vou reformular o começo da minha frase: nenhum bom casamento. Sei que muita gente se arrasta por anos, vivendo um inferno de convivência, só por possuir um momento “sertanejo” nas relações sexuais – “entre tapas e beijos....Um casal que se ama até mesmo na cama provoca loucuras”. Não dá pra não rir, tampouco não dá pra não achar lamentável. Pela conveniência a pessoa pode ficar anos numa letargia conjugal, por causa de filhos, por causa de dinheiro, e como já disse até por causa de uma boa transa. O que eu considero mais presente nesses casos é que o alvo de um relacionamento não foi atingido: a intimidade.


Ser íntimo é mais do que ser bom em sexo. Sexo é um ingrediente fantástico, é como a alcaparra num salmão ao molho de maracujá. Eu detestaria comer alcaparras ao molho de maracujá, ou uma sopa de orégano, mas adoro orégano na minha sopa de legumes. Ingrediente é parte, mas não o todo. O todo para mim é a intimidade e no caso de um casamento, o sexo é um ingrediente fabuloso para se alcançar o prato ideal.


Bom, eu tenho apenas onze anos de casado, sei que é pouco, mas já adianto aos que nem se aventuraram ainda, ou aos que estão começando, que a monotonia sexual não precisa ser uma “verdade incondicional” do casamento. Era o que eu escutava na minha adolescência: aproveite agora porque depois do casamento, meu amigo, será a vida inteira transando com uma só, e será muito chato, mas muito chato mesmo! Não escutei isso uma vez só, escutei milhares! Não sei se será assim pra sempre, mas decidi escrever sobre isso depois de uma noite fantástica, inclusive sexualmente falando.


Saímos com as crianças para passear pela tarde, à noite fomos – agora sozinhos – assistir “A alma boa” no teatro, jantamos num lugar bem aconchegante e onde terminamos? Nela, não para dormir – como me disseram que seria – mas para usarmos as poucas últimas horas mágicas que tínhamos no único ato que aplacaria o fogo da paixão que nos consumia por todo o dia. É lógico que não somos feitos de momentos mágicos como este, mas me disseram que eles nem ocorrem com as esposas, só com as amantes. Mentira boba, mentira de adulto que não soube crescer. No meu casamento, a cada relação sexual, nos descobrimos mais um pouco, nos proporcionamos um novo prazer – é bom ressaltar que, particularmente, considero isso impossível em um ambiente repressor. E o que me inspirou a escrever este texto é que juntos, eu e minha esposa, chegamos à conclusão de que não foi o número de transas que nos levou a este estado de alumbramento, porém a intimidade. Prazer em conversar, em sair sem mais ninguém, prazer em correr de volta pra casa pra assistir a um vídeo juntos, prazer em levarmos as crianças para a praça, prazer em prepararmos “a quatro mãos” almoços e jantares sublimes, prazer em deitar ao fim de um dia cansativo e nos acarinharmos – ainda que não seja para o sexo. Anotem aí alguns ingredientes!


O prato principal – a relação íntima – é agridoce. Citei alguns ingredientes do lado doce do prato, mas envolve muita tensão, diálogo contraditório, choro, em sua composição. A diferença de um prato comum é que quando erramos nos temperos ácidos, salgados ou amargos, existe sempre a possibilidade do recomeço, sem que o prato perca o sabor. Para quem se entrega ao mistério de caminhar em intimidade, de corpo e alma, tudo coopera para o aprofundamento da relação, e é isso que dá mais sabor a cada ingrediente. No caso do casamento, é isso que dá mais sabor ao ingrediente chamado sexo.

Mas a regra vale para todo tipo de relação. Tudo que fica no superficial, no instantâneo, não tem sabor, nem dá vontade de preparar – deve ser por isso que miojo demora três minutos para ficar pronto, se fossem cinco eu desistiria!

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O Pão Nosso


Quarta-Feira, noite fria, momento aquecedor do "chá-da-quarta". Os irmãos vão chegando, cada um com sua maneira, sorriso, uns com uma garrafa térmica, outros com um pão, um pacote de bolachas. Sentamos à mesa posta no meio da igreja, cantamos, oramos, comemos e continuamos a reflexão sobre o "Pai Nosso".
Quando paramos sobre o "pão nosso", aplicamos o mesmo critério de interpretação que havíamos aplicado sobre o Pai - não é meu o Pai, não é de um povo, é nosso.
Também pensamos na conotação "espiritual" que o pão pode ter na fala de Jesus. Mas quando penso no pão como tudo o que possuo, ou conquisto, que me faz viver no cotidiano, então repenso toda a injustiça que cometo com o que não é meu, com o que é nosso.
O capitalismo, associado ao protestantismo americano, me ensina a cultivar minha espiritualidade de um lado, mas produzir e acumular ao máximo o que eu puder, de outro. Me ensina a dar minhas sobras, esmolas, para que o pobre possa ser socorrido. E em mim, o tamanho do meu sonho, cultivado pelos meu desejos mais infantis, regado pela minha ganância e adornado pela minha indiferença ao sofrer do outro, diz o teor do que me será "o necessário para o cotidiano".
Quando me dei conta de que o pão que chega à minha mão não é só meu, mas é nosso, percebo-me em dívida. Retenho pão do outro - enquanto divirto-me com a fartura inconsequente, rio do que não conseguiu alcançar o necessário para o seu dia.
Antes de me desesperar entendi por que peço perdão por minhas dívidas: confio inteiramente na graça de Deus. Me percebi devedor, mas confio no Deus que, ao aproximar-me dele em oração, sou transformado. Como foi dura a confrontação com minha realidade egoísta, mesquinha, mas foi melhor ainda a possibilidade de me achegar ao meu Pai, pedindo perdão e sentir-me acolhido mesmo achando-me em falta.
Achegar-se ao Pai confronta, transforma e consola. O Pai é nosso e o pão é nosso.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Os Náufragos de Deus


“O choro vem perto dos olhos para que a dor transborde e caia. O choro vem quase chorando como a onda que toca na praia. Descem dos céus ordens augustas e o mar chama a onda para o centro. O choro foge sem vestígios, mas levando náufragos dentro.” Cecília Meireles

Quando tentamos fazer teologia partimos da pergunta: o que é Deus? O problema é que a resposta pode nos levar a “quem é Deus”. Se estamos num ambiente onde deus é impessoal, apenas espiritual, então não fará a menor diferença o que nós imaginamos sobre o que ele faz, como age, sua ética, sua razoabilidade. Ao ser intocável e impessoal o outro nada mais é que objeto, não é sujeito, pois no outro nada enxerga. O deus grego era assim.

Se a minha resposta sobre o que é Deus me remete a Jesus, então tudo muda. O impessoal torna-se carne, o apenas espiritual habita entre nós, sente fome, prazer, alegria e chora. E uma confusão se instaura na nossa cabeça: queremos atribuir a Jesus os moldes de deus que víamos nos mitos, nos seres impessoais, intangíveis.

Para um deus impessoal não é nem um pouco complicado atribuir-lhe atributos que, para o outro humano, sujeito, pessoa, ficaríamos constrangidos em predicar: frio e calculista. Lembro-me que nas novelas antigas os piores vilões carregavam estes adjetivos. Para nós seres humanos a morte ainda é a maior catástrofe, nela enxergamos o ponto final da beleza – em uma forma crua de se enxergar a realidade, conheço a beleza poética que vê para além do tal ponto. Tanto assim o é, que o Deus da bíblia se recusa a ser conhecido como o deus da morte. Principalmente Jesus se relaciona diretamente com a proposta de vida, vida em abundância, vida eterna.

Se Jesus é pessoa como nós, seria cruel atribuir-lhe, pelo período chamado eternidade, a determinação da morte de cada pessoa, ser, que no mundo há. Se assim o fosse chamaríamos a Deus de frio e calculista. Repito, se nossa resposta sobre quem é Deus nos remete ao impessoal, tudo bem. Mas se nos remete a Jesus então é tudo diferente, pois agora é uma questão de caráter. E esse caráter ficaria altamente questionável a partir do menor versículo da Bíblia que, na minha opinião, lança a maior luz sobre o caráter eterno de Deus: Jesus chorou. (Jo 11:35)

Para um ponto de vista, Jesus determinou na eternidade a morte de Lázaro, pois por qual razão, agora que está frente ao seu túmulo aparece-nos com lágrimas? Parecem-me as lágrimas de uma atriz de novela das oito, que dia desses, ganhou um diploma de mestre da turma de escoteiros da qual, na infância, foi parte. É difícil acreditar em lágrimas de atores. E se Jesus é determinista, não faz nenhum sentido o choro, ou trata-se de Jesus o ator. Mas eu não acredito assim e me comovo com um Deus que ao presenciar a dureza da morte, a dor de ver um amigo partir, de uma família perder um pedaço de si, chora. O texto continua e nos diz que ele comove-se novamente em seu íntimo.

A partir disso vemos que Deus carrega dentro de si as dores dos naufrágios da nossa existência, carrega em seu peito a turbulência dos maremotos do nosso dia-a-dia conturbado, aflito, angustiado.

Na percepção iluminadora da Cecília Meireles a dor de Jesus lhe chega aos olhos para que transborde e caia, Ele chora. Não “triunfaliza” o próprio milagre que virá a seguir, não capitaliza novos fiéis ao seu movimento. Sente as dores dos outros, sente a própria dor e se permite o escoar de seus náufragos.

É a esse Jesus que eu me junto, pois - na minha pior face – sinto como Bernardo Soares (citado por Rubem Alves em Teologia do Cotidiano) “Há idas de poente que me doem mais que a morte de crianças” e realmente não quero ser isso. A nossa ganância nos torna impessoal no que possuímos e a perda do que temos nos dói mais que a catástrofe do outro. Nosso Jesus é rico em compaixão e isso significa não só sentir a dor do outro, mas aguçar a sensibilidade para quais dores buscamos carregar em nosso peito. Afinal, podemos escolher tanto as alegrias que queremos colecionar, quanto as lágrimas que iremos chorar.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A Vacina e o Propagandista


Minha filha adorou a notícia sobre a vacina contra a gripe H1N1. Empolgada com a novidade que a levaria à imunidade – lógico que o que ela gostou mesmo foi da propaganda da TV – pediu-me que a levasse com urgência ao posto de saúde. Eu, tentando ser um bom pai, assim o fiz. Ao lá chegar, algo fez com que todas as convicções da minha filha fossem dissolvidas em pó que o vento levou: o tamanho da agulha. Não sabia se ria ou se chorava, me senti um monstro pela duplicidade de sentimentos, porém foi incontrolável. Perguntava a mim mesmo, olhando aqueles olhos suplicantes por misericórdia e aquele beicinho inferior que sobrepujava o superior, semelhante a dois irmãos se abraçando para espantar o medo: Cadê aquela menininha consciente e conscientizadora? Cadê aquela meia-hora de sermão sobre o quanto a vacina é importante, urgente? Onde foi parar a menina cheia de bravura para enfrentar o “mal suíno”?
Hoje eu relembrei isso e me deparei comigo mesmo, depois de uma frase do Varillon: A fé é comprometimento, não mera opinião.
Das teologias protestantes a que mais me agrada é a da missão integral. Acho linda a propaganda de justiça, estilo de vida simples, igreja no mundo e tantos outros pontos que me encantaram e me rechearam o discurso. Cantei sobre isso, preguei sobre isso, discuti e argumentei sobre isso. Até que me percebi “com medo da agulha”. São várias as vacinas que esta teologia apresenta, mas tenho muito medo de uma em especial.
O estilo de vida simples é maravilhoso até o ponto em que ele vai para além da epiderme e precisa penetrar a minha corrente sanguínea para se tornar modo de vida, principalmente acima do discurso. É linda a propaganda da pessoa que poderia viver com menos para que o outro, que tivesse o nada, pudesse ter algo mais. Imagino isso na televisão: semelhante a um homem branco, de classe média, ajudando uma jovem negra da favela com um donativo mensal. A menina usa o dinheiro para estudar e se torna classe média igual a ele, fade out e uma música suave traz a logomarca do ministério da “distribuição voluntária de renda”. A propaganda passa e a novela retorna. O governo jamais instituiria um ministério desses, assim como as igrejas dificilmente criariam um ministério assim. Digo dificilmente por já ter visto um ministério assim numa igreja. Mas não estou falando dos outros, falo de mim. O pouco que tenho é muito ao que nada tem. Enquanto espero o dia amanhecer melhor a estes, sei lá por qual mecanismo miraculoso, – seja um pacote mais justo do governo, seja uma intervenção divina fantástica – nada muda, para os mesmos o dia continuará frio e cinza. O estilo de vida simples poderia mudar a realidade do outro para algo um pouco melhor, do nada para o pouco. O que realmente mudaria muito seria eu. Por medo das privações – e nem são tantas – perco a oportunidade de sair do nada (ouvinte do evangelho, palestrante do evangelho, propagandista) para o pouco (discípulo de Jesus, seguidor encarnacional das palavras dele).
Na verdade a “picada” só dói enquanto está na pele, enquanto não está transmitindo algo para dentro de nós. A agulha só gera medo, o medo dói mais que a “picada”. Sempre que organizei ou participei de iniciativas de ajuda humanitária percebi a mesma conclusão: fez mais bem a mim do que ao outro. Na questão da fé enquanto comprometimento, eu apenas preciso tornar cotidiano o que é esporádico: ajudo e me dou sempre, não apenas em dias especiais. Parece que vou perder muito, mas é só medo e egoísmo.
Preciso aprender com a coragem da minha menininha e encarar essa agulha de frente, com ou sem medo. Iniciar todos os processos que estiverem ao meu alcance, mesmo que incluam o meu discurso, para mudar a minha realidade egoísta e me livrar deste mal que é bem maior que o “do porco”, é desumano.